Ipsis Litteris

Revisão de textos



quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Quando Chico Buarque e Rammstein se encontraram

Comecei a curtir Rammstein muito antes de começar a aprender alemão. Na verdade, o que mais me motivou a procurar um curso de língua alemã foi justamente esse contato com a língua de Brecht, Kafka, Goethe. Mesmo gostando muito da banda, na terça-feira passada (30/11), abri mão da oportunidade de assistir à segunda apresentação dos caras aqui no Brasil, a turnê de Liebe ist für alle da (2009), não pelo preço do ingresso (consideráveis R$ 200 pelo mais barato!), mas por uma espécie de oclofobia (tenho mesmo é medo de ser pisoteado, devido à minha altura…!).

Mas me fartei de escutar o LIFAD, o mais recente álbum da banda. E futricando pela net, descobri que a quarta faixa desse álbum, Haifisch, intertextualiza com uma das canções do musical Die Dreigroschenoper (1928), Die Moritat von Mackie Messer, o que, imediatamente, me lembrou Chico Buarque. Chico Buarque? Sim, o bom e velho Chico: a primeira e a última canções da Ópera do Malandro, de 1979, são uma versão em português da canção em alemão.

Die Dreigroschenoper é um musical composto pelos alemães Bertolt Brecht, poeta, diretor e dramaturgo, e Kurt Weill, compositor. Em tradução livre para o português, o título traduz-se algo como A Ópera de Três Vinténs, “planejada de forma tão pomposa, como só um mendigo poderia sonhar, e porque ela deveria ser tão barata, que até os mendigos possam pagar”, numa clara crítica ao mundo capitalismo. Inspirada na ópera de balada de John Gay The Beggar’s Opera (1728), Die Dreigroschenoper narra o desfecho trágico de um notório criminoso – MacHeath, popularmente conhecido como Macki Messer – da Londres vitoriana, cujos atos se emaranham com as atividades ilícitas da polícia e de banqueiros. Há adaptações para o cinema e, mais recententemente, para a televisão (2004).

A canção de abertura do musical de Bertolt e Weill, Die Moritat von Mackie Messer, fez estrondoso sucesso e já rendeu mais de 30 versões (e outras tantas referências), desde a primeira execução da ópera, entre elas a de Chico Buarque, para o musical Ópera do Malandro – posteriormente também ganhou adaptação para o cinema (1985), que narra a história de Max Overseas e seu envolvimento com atividades ilícitas.

Haifisch não é exatamente uma nova versão de Die Moritat, mas sugere intertextualidades. O título traduz-se por tubarão em português, peixe com o qual MacHeath é comparado – enquanto o tubarão mostra os dentes (Zähne) na cara, a faca (Messer) de MacHeath ninguém vê:

Und der Haifisch, der hat Zähne
Und die trägt er im Gesicht
Und MacHeath, der hat ein Messer
Doch das Messer sieht man nicht

Diferentemente, o texto de Rammstein não se refere diretamente a algum criminoso e, no contexto geral do álbum – o amor é para todos aí – parece apontar para a velha fórmula “os brutos também amam”:

Und der Haifisch, der hat Tränen
Und die laufen vom Gesicht
Doch der Haifisch lebt im Wasser
so die Tränen sieht man nicht

Tubarões também amam. E choram, mas suas lágrimas  (Tränen) não são vistas, porque vive de baixo d’água – e suas lágrimas é que salgam o mar:

Und so kommt es dass das Wasser
in den Meeren salzig ist

Além do mais, ambos os textos mantêm versos heptassílabos como padrão métrico.

Assim, não é à toa que em minha biblioteca de música Chico Buarque e Rammstein cantam sempre no mesmo palco. Um artista que se preocupa em conferir sentido ao que produz merece ser ouvido, visto, sentido etc. etc.

Nenhum comentário: