Ipsis Litteris

Revisão de textos



sábado, 20 de outubro de 2012

Sartre contracena em “Avenida Brasil”

Quem assistiu ontem ao último capítulo da novela Avenida Brasil, de João Emanuel Carneiro teve a grande saúde de experimentar um pouco do existencialismo sartreano, e muitos, acredito, decepcionaram-se com o rumo que tomaram alguns personagens, em especial os do “núcleo Carminha”, já que o autor da novela não lançou mão de cenas hollywoodianas de fuga e perseguição policial. Nada, quase calmaria. E pra “piorar” (piorar pra quem? Pro telespectador sedento de sangue? Pra personagem? Foi pior mesmo? Aliás, é preciso que as coisas piorarem?), no momento mais aguardado, Carmem Lúcia (que ficou mais conhecida como Carminha), a vilã, se entrega. E é aí que a coisa fica boa (se piora, por que não pode melhorar?), filosoficamente falando.

Não sei se mais alguém percebeu, mas, nessa hora, entrou em cena um personagem quase despercebido, mas que mudou radicalmente o curso daquela história, por descontruir a expectativa sanguinária dos telespectadores: o pensador francês Jean-Paul Sartre, autor das conhecidas máximas “o inferno são os outros” e “o homem está condenado a ser livre”, entre outras. Segundo Sartre, o homem, na impossibilidade de atribuir sua vida à vontade de um ser divino, encontra-se desamparado e livre pra construir sua vida como bem entender, por conta própria, devendo fazer suas próprias escolhas e assumir a responsabilidade de todos seus atos.

E esta foi a guinada que Carminha tomou numa situação extrema: assumiu a responsabilidade pelos seus atos ilícitos. Era o desfecho pelo qual tanto esperou, para o qual tanto se projetou: livrar-se de Tufão e Nina e fugir com alguns milhões no bolso. Mas, no momento decisivo e depois de uma briga, escolheu abandonar o projeto de fuga, desabilita os comparsas (seu próprio pai, inclusive) e liberta os cativos.

Projeto é um conceito muito caro a Sartre: “o homem nada mais é do que o seu projeto; [...] não é nada além do conjunto de seus atos”. O projeto que Carminha engendrou para si até aquele momento fê-la tornar-se egoísta, cruel, vil. A responsabilidade é toda sua. Não acompanhei a novela, confesso. Assisti somente ao capítulo derradeiro, e não conheci a história de vida das personagens. Independentemente da sua Erlebnis, ser vilão é uma opção, é uma escolha. Sartre diz que ninguém nasce herói ou covarde, mas se faz a si mesmo herói ou covarde, a partir dos seus atos, das escolhas que toma. Carminha é o que é porque assim escolheu ser.

Mas a ela era possível mudar, e num instante de consciência da própria existência (o cogito cartesiano) e, por conseguinte, da existência de todos à sua volta, a vilã toma atitude própria de heroína e liberta seus “rivais” (acredito que a rivalidade era muito mais da parte de Carminha). No entanto, a responsabilidade sartreana ainda não se lhe havia estabelecido completamente, pois a personagem ainda tenta outra fuga, a morte: entregando uma arma de fogo a Nina, pede a esta que a mate. Com o rosto contorcido de ódio, Nina até aponta a arma contra Carminha, mas não atira. Nem deveria, kantianamente falando. Surge uma espécie de empatia entre as duas, e Nina até sugere a Carminha que fuja. Então, num momento de angústia, entre a liberdade do corpo e a liberdade da consciência, Carminha opta por esta. Não foge, assume a responsabilidade pelos seus atos, cumpre sua pena e passa a viver na pobreza.

Obviamente, Carminha não se tornou uma heroína nem mártir. Libertar-se do labéu de vilã não será tarefa fácil. Segundo Sartre, “o homem que se alcança diretamente pelo cogito descobre também todos os outros [...]. Ele se dá conta de que só pode ser alguma coisa [...] se os outros o reconhecerem como tal.” Muita ação, muita atitude deverá ser empreendida se Carminha quiser ser reconhecida como alguém em quem se pode confiar. Assumir a responsabilidade pelos próprios atos e cumprir sua pena foram seus primeiros passos para sair do estado de má-fé. Quando recebe visita de Jorginho e Nina, Carminha se emociona ao ver o neto pela primeira vez e, num determinado momento da truncada conversa que têm, Carminha diz: “Eu tô vivendo uma vida de verdade agora graças a vocês”. É aí que a personagem mostra que tomou plena consciência de sua existência e da responsabilidade que geram suas escolhas.

Assim, o autor da novela, em vez de cede aos apelos de um público sádico, preferiu mostrar que a mudança de caráter é possível uma vez que Carminha deixa seus estado de má-fé para assumir um projeto de escolhas autênticas, de liberdade.

SARTRE, J-P. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1984. Os pensadores.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A doutrina política maquiavelista em O Príncipe*

*Este artigo, de caráter inédito, surgiu das discussões em sala durante as aulas de História da Filosofia Política 1 (GFI014), ministradas pela professora doutora Geórgia Cristina Amitrano no curso de Filosofia do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia (Ifilo/UFU) no primeiro semestre de 2011.

1 INTRODUÇÃO

O homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera

(Augusto dos Anjos)

Em 1513, Nicolau Maquiavel escreve um opúsculo, O Príncipe, que posteriormente lhe renderia o famigerado termo antroponimicamente derivado maquiavelismo. Stricto sensu, maquiavelismo baliza a doutrina política de Maquiavel. Contudo, tal doutrina, escoada em filtros muito simplistas, passou a sinonimizar conduta desleal e pérfida, e outros derivados seguiram-se: maquiaveliano, maquiavelice, maquiavélico, maquiavelista, maquiavelístico, maquiavelizar – interessantemente, até mesmo a família linguística de maquinar e maquiagem, ainda que não haja nenhum parentesco etimológico, guarda certa proximidade gráfica e semântica com maquiavelismo, particularmente maquiável. Por questões de continuísmo derivacional e menor frequência de uso (e, por isso, menor gasto e, acredito eu, menor corrupção conceptual), darei preferência ao termo maquiavelista sempre que à doutrina de Maquiavel me referir.

Neste artigo, proponho-me a levantar os traços que caracterizam a política maquiavelista em O Príncipe.

***

Segundo Abbagnano (2007), na Filosofia Política, registram-se quatro sentidos principais para o termo política, quais sejam: i) a doutrina do direito e da moral; ii) a teoria do Estado; iii) o estudo dos comportamentos intersubjetivos; e iv) a arte ou a ciência do governo. No último centra-se a doutrina política maquiavelista.

A Itália do século XVI, fragmentada em diversos principados e algumas repúblicas (que se diferenciavam menos pela natureza do regime do que pelo grau de participação popular no governo), é o pano de fundo para que Nicolau Maquiavel apresentasse uma nova concepção política, a que os críticos frequentemente se referem como realismo político (ABBAGNANO, 2007).

Maquiavel, florentino que exercera diversos cargos públicos, mas, então, acusado de sedição e exilado em San Casciano após diversas reviravoltas no governo do Principado de Florença, redige e dedica O Príncipe a Lorenzo II de Médici, o Magnífico, talvez numa tentativa de obter amparo régio – “E se Vossa Magnificência, do ápice de sua altura, alguma vez volver os olhos para baixo, saberá quão injustamente suporto uma grande e contínua má sorte” (MAQUIAVEL, 2010, p.11) –, mas, com certeza, como fruto das renovações do Renascimento, movimento literário, artístico e filosófico iniciado em fins do século XVI e cujas características fundamentais eram o humanismo, o naturalismo e a renovação religiosa e político-conceptual, “com o reconhecimento da origem humana ou natural das sociedades e dos Estados” (ABBAGNANO, 2007, 1.006).

2 PARA GREGOS E MEDIEVOS

No período clássico da civilização grega (séculos V e IV a.C.), Platão, em A República, e Aristóteles, especificamente em Política, teorizam o Estado ideal e como deveriam ser o governo e o governante ideais. Na Kallipolis platônica, as crianças,

educadas pelo Estado, são encaminhadas para as funções específicas necessárias à manutenção da cidade, de acordo com a aptidão de cada uma. Isso se faria independentemente da posição dos próprios pais. Alguns interrompiam cedo os estudos para se ocupar com a agricultura, o artesanato e o comércio; outros estudariam mais um pouco para se tornar soldados dedicados à defesa da cidade; outros mais notáveis se preparariam até os cinqüenta anos, inclusive com rigorosa formação filosófica, e entre eles seriam escolhidos os magistrados mais capacitados para a administração da cidade (ARANHA, 2006, p. 38).

Aristóteles, a partir do cotejo de vários textos constitucionais (ARANHA, 2006), levantou argumentos do melhor Estado, das formas políticas corrompidas e da educação juvenil que fortaleça as virtudes constitutivas dos cidadãos.

Durante a Idade Média, os padres da Igreja procuraram atrelar a moral cristã à ação política e estabelecer relações entre as instâncias espiritual e temporal: “aos poucos se acentua a força do poder espiritual sobre o poder temporal e a ingerência da Igreja nos assuntos políticos” (ARANHA, 2006, p. 40, grifos da autora). Ainda segundo Aranha (2006), as teorias políticas desse período baseavam-se numa ideia negativa da natureza humana e o homem estaria constantemente ameaçado pelo pecado, pelo que era preciso um permanente controle comportamental, a cargo do Estado, a fim de evitar que se chafurdasse no pecado.

3 A RUPTURA: O MAQUIAVELISMO

O humanismo renascentista promoveu a secularização do pensamento. As especulações teóricas, baseadas em experiências e observações, se desvinculam das teses religiosas e do testemunho da fé e ganham autonomia.

Assim, é no mundo real que Maquiavel encontra os elementos para construir seu pensamento político. Observa, analisa e imprime sua crítica a respeito das ações de personalidades da sua época (como Luís XII de França e o papa Alexandre VI) – e até mesmo sobre eventos históricos da Antiguidade Clássica.

Com Maquiavel, a política afasta-se daquela medieval, pois conquista autonomia e se desata da ética cristã. Também se distingue da política clássica, pois, em vez de teorizar um Estado ou um governo ideal, comandado por um bom governante, apresenta a maneira como os governantes de fato agem. “E muita gente imaginou repúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como reais” (MAQUIAVEL, 2010, p. 36) – eis uma clara referência a A República, de Platão.

Em consonância com o empirismo renascentista, Maquiavel emprega largamente o exemplo do condottiere filho do papa Alexandre VI, César Bórgia, duque de Valentinois, com quem partiu em duas missões diplomáticas e por quem nutria admiração devido à “eficácia da ação, capacidade de dissimulação e malícia, considerando-o o modelo de príncipe que a Itália necessitava para a unificação” (ARANHA, 2006, p. 32).

Tal empirismo está intimamente relacionado com o utilitarismo: “[...] como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas do que pelo que delas se possa imaginar” (MAQUIAVEL, 2010, p. 36). Não caberiam, portanto, divagações utópicas quando o que se quer são comandos práticos de aplicação imediata.

Maquiavel vai além da máxima aristotélica de que o homem é “naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade” (ARISTÓTELES, 2010, p. 13 | 1253a). Segundo o florentino, “os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro, e, enquanto lhes fizeres bem, todos estarão contigo, oferecendo-te sangue, bens, vida, filhos [...]” (MAQUIAVEL, 2010, p. 38). O incômodo realismo do maquiavelismo procura justificar por que razão é preferível ser temido a ser amado, já que “o amor é mantido por um vínculo de obrigação, o qual, em virtude de serem os homens maus, é rompido sempre que lhe aprouver, ao passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio de castigo, que é um sentimento que não se abandona nunca” (MAQUIAVEL, 2010, p. 38).

4 A ÉTICA MAQUIAVELISTA

No entanto, dizer que Maquiavel se desfaz da ética cristã não significa que tenha se desfeito de toda ética. Segundo a doutrina política maquiavelista, o príncipe é antes de tudo um homem de virtù, virtuoso não aristotélica nem cristãmente, mas dotado de habilidades necessárias para conquistar e manter seu domínio e capaz de reconhecer o momento oportuno (Aristóteles fala em καιρός) e dele exitosamente se aproveitar em prol do coletivo, conforme o exemplo de Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu: “e examinando-lhes a vida e as ações, conclui-se que eles não receberam da fortuna mais do que a ocasião de poder amoldar as coisas como melhor lhes aprouveram. Sem aquela ocasião, suas qualidades pessoais se teriam apagado, e sem essas virtudes a ocasião lhes teria sido vã” (MAQUIAVEL, 2010, p. 19).

Ao discorrer sobre as formas de conquista de novos principados, Maquiavel aponta crueldades (especificamente, assassinatos) como estratégia válida somente se aplicada de forma comedida:

Bem usadas se podem chamar aquelas (se é que se pode dizer bem do mal) que são feitas, de uma só vez, pela necessidade de prover alguém à própria segurança, sem nelas insistir depois, transformando o mais possível em vantagem para os súditos. Mal usadas são as que, ainda que a princípio sejam poucas, em vez de extinguirem-se, crescem com o tempo (MAQUIAVEL, 2010, p. 25).

A crueldade dever ser aplicada em dose única e para benefício de a comunidade, de modo a dela obter confiança e apoio: “[...] ao apoderar-se de um Estado, o conquistador deve determinar as injúrias que precisa levar a efeito, e executá-las todas de uma só vez, para não ter de renová-las dia a dia. Desse modo, poderá incutir confiança nos homens e conquistar-lhes o apoio, beneficiando-os” (MAQUIAVEL, 2010, p. 26).

A virtude maquiavelista, tão realista e utilitária quanto a doutrina em que se insere, não comporta utopias nem se prende a conceitos como bondade e justiça. Na verdade, agir com bondade e piedade é dirigir-se para a própria derrocada:

vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria do que o modo de se preservar; e um home que quiser fazer profissão de bondade, é natural que se arruíne entre tantos que são maus (MAQUIAVEL, 2010, p. 36, grifos meus).

Mas isto não significa que o príncipe seja desprovido de um conceito de justiça ou sentimentos de bondade e piedade. Até mesmo Maquiavel admite que “seria sumamente louvável que um Príncipe possuísse, entre todas as qualidades referidas, as que são tidas como boas”; mas o realismo maquiavelista não perde de vista que “a condição humana é tal que não consente a posse completa de todas elas, nem ao menos sua prática consistente”, daí convir ao regente aprender a agir com maldade, se a ocasião o pede: “assim é necessário a um Príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade” (MAQUIAVEL, 2010, p. 36) – o poeta brasileiro Augusto dos Anjos (2004) compartilhava visão semelhante à de Maquiavel, conforme trecho de Versos Íntimos, tomado como epígrafe deste artigo.

Da mesma forma, o príncipe só deve proceder à pilhagem de bens e ao rapto de mulheres e crianças “quando houver justificativa conveniente e causa manifesta”. Contudo, estando em combate, convém ao príncipe “não se importar com a fama de cruel, porque, sem ela, não se conseguiria nunca manter um exército unido e disposto a qualquer ação” (MAQUIAVEL, 2010, p. 39).

Ressalto o caráter estratégico – e, portanto, transitório – da maldade a que se refere Maquiavel, de modo a se evitarem distorções de sua doutrina. Há, sim, um traço de oportunismo nas manobras políticas sugeridas por Maquiavel, sempre com vistas ao benefício de toda a comunidade.

Enfim, o fim somente justifica os meios enquanto direcionado para o benefício senão de todos, pelo menos da maioria da comunidade – o princípio do pars pro todo (segundo o qual o sacrifício de uma parte do corpo se faz necessário para a salvação de todo o restante) de que trata Walter Burkert (2001) parece acomodar-se confortavelmente no maquiavelismo. Quando os meios se orientam para uma finalidade particular e egoísta, justificam-se aí atitudes maquiavélicas propriamente, no sentido mais corrompido do termo.

5 CONCLUSÃO

Em suma, rompendo com a política utópica da Antiguidade Clássica e a política cristianizada da Idade Média, Maquiavel inaugura uma nova forma de se pensar o fato político e elabora uma arte de governo empírica, secular, realista, oportunista e, acima de tudo, humanista, a partir do mundo real, cru, e da observação do homem real, existente.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5. ed. Tradução: Alfredo Bossi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ANJOS, A. dos. Eu e outras poesias. São Paulo: Marin Claret, 2004.

ARANHA, M. L. de A. Maquiavel: a força da lógica. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2006.

ARISTÓTELES. A Política. Tradução: Nestor Silveira. São Paulo: Folha de S.Paulo, 2010.

BURKERT, Walter. A Criação do Sagrado. Vestígios biológicos nas antigas religiões. Tradução: Vitor Silva. vol. 3. Lisboa: Edições 70, 2001.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe e Escritos Políticos. Tradução: Lívio Xavier. São Paulo: Folha de S.Paulo, 2010.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Entre plurais e siglas

Umas das muitas infindáveis discussões sobre usos da língua portuguesa diz respeito ao plural de siglas. Deve-se usar 's ou somente o -s? Afinal, siglas têm plural? Muito do que se vê  no uso das siglas está balizado por questões gerais de uso consagrado e outras particulares de uso estilístico.

Uma coisa é uma coisa...

As siglas, ou abreviaturas, são ao mesmo tempo um processo de formação vocabular da língua portuguesa e o próprio produto desse processo e consistem de uma palavra formada pelas letras (ou pelas sílabas) iniciais de uma outra palavra ou de um sintagma: AM (Amazonas) e MinC (Ministério da Cultura).

... outra coisa é outra coisa

Não confundamos siglas com abreviações. Enquanto siglas são composições vocabulares (várias palavras reduzidas a apenas uma), abreviações são a redução do corpo fônico de uma palavra ou de um sintagma, limitada por um ponto (.), como as expressões latinas e.g. (exempli gratia) e r.i.p. (resquiescat in pace)

Como se escrevem siglas

As siglas são escritas, via de "regra" (não há, formalmente, regras sobre siglas, apenas considerações – por vezes dissonantes – de estudiosos consagrados), em letras maiúsculas, quando constam de até 3 letras. Aquelas com 4 ou mais letras orientam-se pelo seguinte raciocínio: se formam uma palavra decomponível em sílabas, então a primeira letra é maiúscula e as demais, minúsculas, como Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte); se não podem ser divididas em sílabas, mas cada letra é soletrada, então toda a composição é escrita em letras maiúsculas, como em CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa). Não se usam pontos para separar as letras que compõem as siglas.

Note-se o comportamento divergente de algumas siglas com suas "regras" de formação. O que se vê em MinC e CNPq, por exemplo, é a repetição de uma aplicação estilística à estas siglas. Nada impede que se escrevam Minc e CNPQ.

Siglas tem plural?

Enfim, o gargalo. Diz Cláudio Moreno (http://glo.bo/n44uSY | acesso em 26 ago 2011):

Eu, por exemplo, sigo a lição do meu grande mestre Celso Pedro Luft, que ensinava que as siglas, no momento em que são substantivos (mesmo criados artificialmente, são substantivos, exercendo todas as funções sintáticas reservadas a essa classe de palavras), passam a ter plural, que é assinalado, no Português, pelo acréscimo do S

Pode-se facilmente objetar o argumento de Celso Pedro Luft. Nem todos os substantivos em português fazem plural em -s. E não me refiro aqui a estrangeirismos de uso corrente no Brasil, como o germânico blitz, cujo plural é blitze, e o latino campus, cujo plural é campi; nem a palavras desconhecidas da maioria dos falantes nativos de português brasileiro.

Diversas são as formas plurais possíveis em português: gaviões, escrivães, artesãos, papéis, sóis, males, canis, projéteis, itens, pólens, juniores. Para muitas palavras, acrescentar -s apenas não basta, há também uma pequena modificação morfofonética no corpo do radical.

Outras palavras nem mesmo se modificam no plural e são abundantes os vocábulos que o dicionário registra como 'substantivo de dois números', por exemplo códex ou tórax. Alguém poderia, então, alegar: "mas quem é que usa códex tão frequentemente assim?". Citemos, pois, ônibus e lápis. "Ah, mas estas já terminam com a letra s!" Que se pode dizer, então, em defesa do plural de sem-teto e sem-trabalho?

Várias são as possibilidades de formação de plural na língua portuguesa. Por que as siglas deveriam ter plural? E por que um plural, digamos, regular, pelo simples acréscimo de -s? Além do mais, recordemos o processo de formação de uma sigla. Não é pelas letras iniciais do sintagma? Por que acrescentar -s, então?

Coloquemos, pois, marca de plural nas siglas e vejamos: se, em CPIs, é imediata a percepção da marca de plural, em siglas com mais de três letras e que são silabáveis, como Bafta (a premiação – cujo plural pode ser tranquilamente justificado por um processo metonímico), o plural já não é tão imediatamente evidente e pode-se confundir o -s com a inicial de uma palavra que não consta do sintagma.

"Apóstrofo–esse"

Agora, o que não faz absolutamente nenhum sentido é a tentativa de formação de plural de siglas pelo acréscimo de 's. Sem chance!

O apóstrofo (') – e não se confunda com apóstrofe – em português tem uso especializadíssimo: indica a supressão de fonemas, como em mãe-d'água. Mais que isso, indica palatalização de fonemas em transcrições fonéticas ou transliterações. Portanto, nada de plural.

Influência anglicista? Também não, porquanto o apóstrofo no inglês indica a relação de posse simpaticamente chamada de genitive case. É certo que brasileiro gosta de imitar os anglófonos, mas esta nem Tio Sam explica.

Enfim...

De tudo, fica a lição de que não existe regulamentação formal quanto ao plural de siglas e seguir o que já se convencionou talvez seja a melhor decisão a se tomar: siglas fazem plural pelo simples acréscimo da letra esse ao fim. Mas nunca, nunquinha mesmo, queira fazer plural do que quer que seja utilizando 's – não é nem bonito nem funcional.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Hino aos cachaceiros

São símbolos da República Federativa do Brasil

a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais

(CF/88, art. 13, § 1º)

Hinos – composições poemáticas e pseudopoemáticas de enaltecimento [por vezes, de caráter bajulatório] – estão por toda parte e em todos os tempos e se prestam aos mais variados objetos de adoração.

A arte hinográfica compreende produções de elevada composição literária e requintado acompanhamento musical. São poemas e cânticos compostos para o louvor de divindades ou heróis; são expressão de alegria e entusiasmo em honra da pátria ou de seus defensores. O Hino Nacional Brasileiro e La Marseillaise são sublimes declarações de amor. E o que dizer da ode An die Freude, de Friedrich Schiller, orquestrada no quarto movimento da 9ª Sinfonia de Beethoven? Mais que uma ode, um verdadeiro hino à alegria!

Mas, como toda arte, a hinografia também tem seus refugos, seus piruás, e abarca produções de baixo primor literário e fonográfico. Hinos de agremiações futebolísticas... Francamente, poxa! Não que o objeto não sirva bem para produções artisticamente mais elaboradas. Investimento artístico é que parece faltar. Orquestrar uns "Salve, salve" com violoncelos, oboés, trompetes e tímpanos não confere erudição a nenhum hino. Se Camões me permite a paródia, chutar a bola é preciso, compor hinos não é preciso, pois é preciso mestria, a mestria de artistas, não de artesãos.Fortuna_Wheel

Magistralmente, motivos muito mais tolos que uma agremiação desportista já ganharam composições verdadeiramente artísticas. Juntem-se poemas satíricos da Idade Média que versam sobre dinheiro, bebedeira e orgias escritos em latim e alemão por monges safadinhos e eruditos errantes (os goliardos, dos quais você certamente ouviu falar nas aulas de História Geral) e a genialidade de um Orff e voilà!: está pronta a cantata cênica Carmina Burana. Se não a reconheceu de pronto, ouça o 1º movimento da obra, Fortuna Imperatrix Mundi, e tenho certeza de que vai ligar o nome à "pessoa" – no cinema, a faixa já embalou [erroneamente, é claro] várias cenas de suspense e terror.

Os carmina literários correspondem a um códex de cerca de 2 centenas de poemas escritos nos séculos 11, 12 e 13, dos quais Carl Orff, entre 1935 e 1936, pinçou alguns para compor sua cantata, dividida em 3 partes.

A conhecidíssima invocação à Fortuna introduz e a descoberta do amor juvenil, chega-se ao boteco. E aí sobressaem os cantos goliardescos que celebram as maravilhas do vinho. O inebriante 14º movimento, In taberna quando sumus (http://bit.ly/pPgJFb) – a minha predileta –, suspende preconceitos e hierarquias e brinda todos que se entregam aos prazeres de Baco, ou Dionísio (na mitologia grega). O coro de vozes masculinas retrata um boteco abarrotado à meia luz, ébrios caídos pelos cantos, homens se engalfinhando, outros têm uma mão debaixo do saiote de uma mulher e os seios dela na outra, amigos erguem alto os canecos para o brinde, os músicos tocam, poetas declamam. À boemia! Eis um hino realmente digno à bebedeira e, em última instância, a Baco. Melhor ainda com o prestígio de uma Royal Philharmonic Orchestra. É, não é para qualquer um...

Por fim, o coro repete a invocação à Fortuna. Hora de pisar no chão de novo.

Quando vou para o bar, nem me lembro que existem Zeca Pagodinho, Cláudia Leitte ou um porre outro que seja. Que brahmeiro que nada! Dá para ser clássico até na hora de encher a cara.

A Baco!

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Anos 90: da tartamudez à frascaria

Conversa com amigos logo depois de uma apresentação cover de The Beatles há alguns dias na universidade suscitou uma revisitação a uns CDs da eurodance, dos saudosos anos 90. Muitos artistas de um hit só, outros que conseguiram emplacar um álbum (pelo menos no Brasil – um país de todos…). E dancei muito, mas muito mesmo, ao som de Nick French, Whigfield, Masterboy, Double You, Dr. Alban. E veja só! No You Tube, uma “versão 2002” de Cotton Eye Joe, de Rednex, um dos hits de uma fugaz onda country. Carái, véi! Eu tinha o CD do Rednex, mas demorei a perceber que, na capa, havia um penico entre os pés de um homem que urinava. E quem, à epoca, não tentou acompanhar o “Ski bi di bi di do bap do bap do ba do bap” do tartamudo Scatman John? Como me esforcei pra conseguir, mas nem mesmo as palavras de incentivo do artista

If the scatman can do it
So can you

puderam destravar minha língua. O Ice MC era outro que também me enrolava a língua muito mais com seu inglês dialetal do que com a celeridade com que cantava. Tente falar

D to an A to an N to an G to an E to an R to an O to an U to an S

em 3 segundos. “yes mi mus confess him cya.” Cuma? Que isso, companheiro? Fiz bastante ginástica linguocerebral pra entender o que o inglês Iam Campbell cantava.

Paralelamente, uma outra onda, agora latina, também invadiu as paradas de sucesso – e desapareceu tão prestamente quanto surgiu. Los Locos, El Simbolo, Los Argentos, além de versões calientes de outros hits da epoca, principalmente das músicas de Laura Pausini – La Solitudine virou La Soledad, Non c’è virou Se fue. Minha predileta era La Patchanga, com Vilma Palmas Y Vampiros.

Ah, claro! A prentensa sensualidade das músicas do alemão E-rotic. Na verdade era cômico acompanhar os gemidos da voz sensual de Lyane Leigh no refrão de Fritz loves my tits, ou de Fred, come to bed. E o mais impressionante é que, segundo a confiabilíssima Wikipedia, o projeto atravessou o século, atrevessou o milênio (!) e ainda lançou single em 2001, King Kong, no seu mesmíssimo estilo:

My lova lova King Kong turn me on
I want your ringa ding dong all night long

No entanto, quando o assunto é sexo, uma tentativa mais ousada tocou muito nas rádios e casas noturnas. O título mesmo já deixava explícita a impudicícia na letra. Na voz de (Sandra) Gillette e com produção de 20 Fingers, Short dick man fez muita gente dançar e cantar em “na-na-na” (alguns numa versão originalíssima em “la-la-la”) uma letra que ela nem sonhava o que significava. Não sem uma fração de maldade velada, eu ria copiosamente quando me diziam que adoravam aquela música. E me deliciava ao ver sua expressão de surpresa e desagrado quando se descobriam diante de tanta vulgaridade.

É bem certo que alguns se aproveitavam do conhecimento e dedicaram essa música para um ex-alguma-coisa, na explícita intenção de humilhá-lo, assim como o faz o “eu lírico” (se é que há um) da música  (sem desejar entrar no mérito da questão, decidi pressupor que seja uma música, pra efeitos didáticos). Dizer a um homem “Do you need some tweezers to put that thing away?” tem efeito tão devastador quanto dizer a uma mulher que ela está gorda. Todo homem é falocêntrico. E as mulheres, dizem, faloínvidas. Enfim, a sempterna guerra dos sexos.

Na mesma linha desmoralizante, Gillette ainda conseguiu uma pontinha de notoriedade com Mr. Personality: “They call you mr. Personality because you’re so ugly”.

Vê-se que o funk carioca não é assim tão inovador em matéria de baixaria. A diferença é que a maioria dos brasileiros entende o que vai nas letras. E a maioria dessa maioria não só entende, mas também canta, dança (outro conceito pressuposto) e ensina os “pititinhos” a dançar. A vilania faz escola, oferece plano de carreira, dita moda e amplia o acervo vocabular.

É, os anos 90 foram bastante democráticos em fonografia de importação.

O jeito é aumentar o volume quando chega a vez de M People ou Undercorver na playlist e esquecer que o que pode ser pode ser muito ruim também.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Harry Potter: um velho recurso para uma nova história

Finalmente, terminei de ler a série Harry Potter. Agora já posso assistir ao primeiro filme relativo ao último livro da série (procuro ser sempre fiel ao compromisso de, primeiramente, ler o livro cuja história tenha sido transposta para a sétima arte).

No entanto, a má impressão que tinha do personagem homônimo não se desfez. Ao contrário, foi corroborada até a última página. Harry era e continuou sendo um aluno desleixado, completamente dependente dos amigos para se safar das aporias que ele próprio criava para si. Hermione é o cérebro de toda a operação. Até mesmo o pusilânime Rony tem importante função de conter os ímpetos do protagonista.

Deus ex machina

Cada volume da saga Harry Potter empregou largamente um técnica dramatúrgica característica do teatro grego clássico, o deus ex machina, que se refere ao inesperado aparecimento de um objeto ou uma personagem que desembaralha a trama, quando chega a uma aporia.

No teatro grego muitas peças que terminavam com um deus sendo literalmente baixado por um guindaste até o local da encenação. Esse deus então amarrava todas as pontas soltas da história.

De fato, acredito que a série Potter tenha-se utilizado do recurso deus ex machina tanto quanto Eurípedes o fez em suas tragédias, o que, talvez, pudesse macular a criatividade da autora, J. K. Rowling (www.jkrowling.com). J. R. R. Tolkien valeu-se também do dispositivo grego em seu longo Senhor dos Anéis. Mas acho que esse não seja o caso, pois Harry Potter e as Relíquias da Morte me seduziu de tal forma, que o devorei em praticamente 3 dias (até me esqueci que ainda tenho uma dívida de leitor com a Terra Média).

Os diversos mistérios que vão surgindo ao longo da caçada às Horcruxes e os arremates para dar coesão aos 7 livros da série me deixam extremamente curioso em saber se a autora já tinha em mente, desde o primeiro livro, o fim de sua longa história. Acredito que, em parte, sim. Pelo menos a intriga que se forma acerda da moral de Dumbledore e os conflitos daí decorrentes já deviam ter sido esboçados com bastante antecedência. Ela é realmente uma escritora fantástica mesmo e soube trabalhar magistralmente o elemento contingente inerente à sua criação.

Enfim, o fim?

Que fim levou a Pedra da Ressurreição? Essa é uma das incôgnitas que ainda pairam nos ares mágicos de Hogwarts.

Agora é não deixar a peteca cair, para que os livros posteriores – e eles hão de vir, tomara! – não se limitem a reinventar a mesma história nem a enfadonhamente prolongar o que – parece – já está muito bem estabelecido.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Doutor, é urgência ou emergência?

É sempre com o cenho franzido que vejo no noticiário que, num determinado período do ano, normalmente em dias de feriado nacional, o pronto-socorro vai atender somente a casos de urgência e emergência. Dois pontos me incomodam na assertiva.

Pronto-socorro = pressa

Primeiramente, sempre entendi pronto-socorro como aquela parte de um hospital onde se presta atendimento de caráter urgente, em contraposição a ambulatório, por exemplo, cujo atendimento deve ser previamente marcado. E assim se lê no dicionário Houaiss:

pronto-socorro s.m. 1  hospital ou setor de um hospital onde se presta socorro médico de urgência <levar o acidentado para o p.>  2  p.ext. ambulância do pronto-socorro <chamar o p.>  3  p.ext. oficina de conserto de (algo) <p. de automóveis, de bonecas etc.>  ¤ gram pl.: prontos-socorros

Questiono-me, então, a necessidade de um hospital, ou o setor de um hospital, que só presta socorro médico urgente restringir seu atendimento aos casos de urgência. Estaria havendo desvio de função ou incumbência de funções outras ou extras todos os dias de expediente ordinário? Talvez seja apenas um caso de reforço argumentativo ou, então, de redundância.

Urgência ou emergência?

A minha hipótese: urgência e emergência são sinônimos e a redundância deita-se no cerne da segunda questão que me incomoda. Qual a diferença entre urgência e emergência? O recurso da consulta ao dicionário reforça minha hipótese:

urgência s.f. (1652) 1 qualidade ou condição de urgente <admirava-me a u. com que ele solucionava os problemas> 2 necessidade que requer solução imediata; pressa <tenho u. deste documento> 3 situação crítica ou muito grave que tem prioridade sobre outras; emergência <o médico atendeu a muitos casos de u.> ¤ etim lat. urgentìa,ae 'urgência, grande aperto ou necessidade', der. do lat. urgére 'apertar, comprimir, impelir'

Das acepções 2 e 3, pode-se depreender que um atendimento médico de caráter urgente envolve solução imediata para uma situação crítica ou muito grave.

Buscando-se respostas em websites de hospitais, lê-se no F.A.Q. do sítio eletrônico da cooperativa de trabalho médico e plano de saúde Unimed Inconfidentes (http://bit.ly/eHD2CY – acesso em 17 fev. 2011):

Os atendimentos são denominados de caráter de urgência quando tratam de quadros clínicos agudos, de início súbito, não habitual ao paciente, que impossibilitem a ida do mesmo ao seu médico assistente.

Tal definição ajusta-se bem à definição do dicionário que confirma minha hipótese de redundância e gera mais confusão, porquanto a sinonímia urgência-emergência não é expressamente cíclica. Veja-se a definição no dicionário para emergência:

emergência s.f. (1535) 1 ato ou efeito de emergir 2 situação grave, perigosa, momento crítico ou fortuito <numa e., foi preciso chamar a ambulância> 3 dispositivo de segurança instalado em elevadores, máquinas, meios de transporte coletivo etc. que deve ser acionado em situações difíceis 4 p.met. setor de uma instituição hospitalar onde são atendidos pacientes que requerem tratamento imediato; pronto-socorro 5 B N.E. infrm. briga, discussão, altercação 6 astr nascimento de um astro 7 ent m.q. eclosão 8 morf.bot qualquer excrescência especializada ou parcial em um ramo ou outro órgão, formada por tecido epidérmico (ou da camada cortical) e um ou mais estratos de tecido subepidérmico, e que pode originar nectários, acúleos etc. ou não se desenvolver em um órgão definido ¤ etim lat. emergentia, nom.ac. neutro pl. de emergens,entis 'que emerge' ¤ ant imergência

Para a análise da situação médico-hospitalar em questão, interessam as acepções 2 e, particularmente, 4, que, no entanto, não apresentam nunhuma novidade quanto ao que anteriormente foi tratado – no máximo, corroboram-no.

O F.A.Q. da Unimed Inconfidentes põe nos seguintes termos o atendimento emergencial:

Os atendimentos são denominados de caráter emergencial quando tratam de quadros clínicos agudos que impliquem risco de vida ou requeiram atendimento imediato,

o que também não traz inovação: as situações urgentes e emergenciais compartilham o quadro clínico agudo (em estado crítico) e estas requerem atendimento imediato, conforme definição lexical de urgência.

Com a palavra, o CFM

De modo a dirimir dúvida que possa surgir quanto à caracterização urgente ou emergencial do atendimento em pronto-socorro, o Conselho Federal de Medicina, nos termos da do artigo 1º e seus respectivos parágrafos da Resolução CFM nº 1.451/95, estabelece:

Artigo 1º - Os estabelecimentos de Prontos Socorros Públicos e Privados deverão ser estruturados para prestar atendimento a situações de urgência-emergência, devendo garantir todas as manobras de sustentação da vida e com condições de dar continuidade à assistência no local ou em outro nível de atendimento referenciado.
Parágrafo Primeiro - Define-se por URGÊNCIA a ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência médica imediata.
Parágrafo Segundo - Define-se por EMERGÊNCIA a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem em risco iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo portanto, tratamento médico imediato.

Cotejando-se o texto dos parágrafos, evidencia-se que tanto o caráter imediato do atendimento médico quanto o risco (potencial ou iminente – tais adjetivos, numa perspectiva mais ampla, são sinônimos) de morte aplicam-se a ambos os conceitos analisados (com a corroboração da definição do dicionário) e não podem, portanto, ser fator de distinção.

Além do mais, como ambas as definições na lei falam em condições de agravo, resta apenas a condição de imprevisibilidade dos casos de urgência.

Assim, na pretensa tentativa de discriminar os conceitos de ‘urgência’ e ‘emergência’, a Resolução CFM nº 1.451/95 viu-se enredada no rebojo de conceitos sinônimos.

Risco de vida?

Cabe, ainda, consideração acerca da sempre equivocada expressão “risco [potencial/iminente] de vida”. Risco implica probabilidade de perigo – geralmente com ameaça física para o homem e/ou o meio ambiente – ou de insucesso de determinado empreendimento. De forma ou de outra, risco introduz uma oportunidade considerada negativa. Assim, a ideia contida no parágrafos do artigo 1º da lei em questão soaria convenientemente se fosse expressa nos termos “risco de morte”, supondo-se que vida/viver seja positivo e desejável, consoante caput do artigo (“garantir todas as manobras de sustentação da vida”).

A é B

Do cotejo, depreende-se que o campo semântico de ‘urgência’ é mais restrito e totalmente englobado pelo de ‘emergência’, a partir do que se pode afirmar que “toda urgência é emergência, mas nem toda emergência é urgência”.

Assim, da perspectiva lexical, não há efetivamente discriminação entre atendimento médico urgente e aquele emergencial. Na prática, conforme conversa informal com amigos que trabalham em pronto-socorro, especificam-se os casos que podem esperar um “cadinho” mais (urgentes) e aqueles que necessitam de atendimento realmente imediato e são, portanto, prioritários (emergenciais).