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sábado, 20 de outubro de 2012

Sartre contracena em “Avenida Brasil”

Quem assistiu ontem ao último capítulo da novela Avenida Brasil, de João Emanuel Carneiro teve a grande saúde de experimentar um pouco do existencialismo sartreano, e muitos, acredito, decepcionaram-se com o rumo que tomaram alguns personagens, em especial os do “núcleo Carminha”, já que o autor da novela não lançou mão de cenas hollywoodianas de fuga e perseguição policial. Nada, quase calmaria. E pra “piorar” (piorar pra quem? Pro telespectador sedento de sangue? Pra personagem? Foi pior mesmo? Aliás, é preciso que as coisas piorarem?), no momento mais aguardado, Carmem Lúcia (que ficou mais conhecida como Carminha), a vilã, se entrega. E é aí que a coisa fica boa (se piora, por que não pode melhorar?), filosoficamente falando.

Não sei se mais alguém percebeu, mas, nessa hora, entrou em cena um personagem quase despercebido, mas que mudou radicalmente o curso daquela história, por descontruir a expectativa sanguinária dos telespectadores: o pensador francês Jean-Paul Sartre, autor das conhecidas máximas “o inferno são os outros” e “o homem está condenado a ser livre”, entre outras. Segundo Sartre, o homem, na impossibilidade de atribuir sua vida à vontade de um ser divino, encontra-se desamparado e livre pra construir sua vida como bem entender, por conta própria, devendo fazer suas próprias escolhas e assumir a responsabilidade de todos seus atos.

E esta foi a guinada que Carminha tomou numa situação extrema: assumiu a responsabilidade pelos seus atos ilícitos. Era o desfecho pelo qual tanto esperou, para o qual tanto se projetou: livrar-se de Tufão e Nina e fugir com alguns milhões no bolso. Mas, no momento decisivo e depois de uma briga, escolheu abandonar o projeto de fuga, desabilita os comparsas (seu próprio pai, inclusive) e liberta os cativos.

Projeto é um conceito muito caro a Sartre: “o homem nada mais é do que o seu projeto; [...] não é nada além do conjunto de seus atos”. O projeto que Carminha engendrou para si até aquele momento fê-la tornar-se egoísta, cruel, vil. A responsabilidade é toda sua. Não acompanhei a novela, confesso. Assisti somente ao capítulo derradeiro, e não conheci a história de vida das personagens. Independentemente da sua Erlebnis, ser vilão é uma opção, é uma escolha. Sartre diz que ninguém nasce herói ou covarde, mas se faz a si mesmo herói ou covarde, a partir dos seus atos, das escolhas que toma. Carminha é o que é porque assim escolheu ser.

Mas a ela era possível mudar, e num instante de consciência da própria existência (o cogito cartesiano) e, por conseguinte, da existência de todos à sua volta, a vilã toma atitude própria de heroína e liberta seus “rivais” (acredito que a rivalidade era muito mais da parte de Carminha). No entanto, a responsabilidade sartreana ainda não se lhe havia estabelecido completamente, pois a personagem ainda tenta outra fuga, a morte: entregando uma arma de fogo a Nina, pede a esta que a mate. Com o rosto contorcido de ódio, Nina até aponta a arma contra Carminha, mas não atira. Nem deveria, kantianamente falando. Surge uma espécie de empatia entre as duas, e Nina até sugere a Carminha que fuja. Então, num momento de angústia, entre a liberdade do corpo e a liberdade da consciência, Carminha opta por esta. Não foge, assume a responsabilidade pelos seus atos, cumpre sua pena e passa a viver na pobreza.

Obviamente, Carminha não se tornou uma heroína nem mártir. Libertar-se do labéu de vilã não será tarefa fácil. Segundo Sartre, “o homem que se alcança diretamente pelo cogito descobre também todos os outros [...]. Ele se dá conta de que só pode ser alguma coisa [...] se os outros o reconhecerem como tal.” Muita ação, muita atitude deverá ser empreendida se Carminha quiser ser reconhecida como alguém em quem se pode confiar. Assumir a responsabilidade pelos próprios atos e cumprir sua pena foram seus primeiros passos para sair do estado de má-fé. Quando recebe visita de Jorginho e Nina, Carminha se emociona ao ver o neto pela primeira vez e, num determinado momento da truncada conversa que têm, Carminha diz: “Eu tô vivendo uma vida de verdade agora graças a vocês”. É aí que a personagem mostra que tomou plena consciência de sua existência e da responsabilidade que geram suas escolhas.

Assim, o autor da novela, em vez de cede aos apelos de um público sádico, preferiu mostrar que a mudança de caráter é possível uma vez que Carminha deixa seus estado de má-fé para assumir um projeto de escolhas autênticas, de liberdade.

SARTRE, J-P. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1984. Os pensadores.

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