Ipsis Litteris

Revisão de textos



sexta-feira, 22 de julho de 2011

Hino aos cachaceiros

São símbolos da República Federativa do Brasil

a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais

(CF/88, art. 13, § 1º)

Hinos – composições poemáticas e pseudopoemáticas de enaltecimento [por vezes, de caráter bajulatório] – estão por toda parte e em todos os tempos e se prestam aos mais variados objetos de adoração.

A arte hinográfica compreende produções de elevada composição literária e requintado acompanhamento musical. São poemas e cânticos compostos para o louvor de divindades ou heróis; são expressão de alegria e entusiasmo em honra da pátria ou de seus defensores. O Hino Nacional Brasileiro e La Marseillaise são sublimes declarações de amor. E o que dizer da ode An die Freude, de Friedrich Schiller, orquestrada no quarto movimento da 9ª Sinfonia de Beethoven? Mais que uma ode, um verdadeiro hino à alegria!

Mas, como toda arte, a hinografia também tem seus refugos, seus piruás, e abarca produções de baixo primor literário e fonográfico. Hinos de agremiações futebolísticas... Francamente, poxa! Não que o objeto não sirva bem para produções artisticamente mais elaboradas. Investimento artístico é que parece faltar. Orquestrar uns "Salve, salve" com violoncelos, oboés, trompetes e tímpanos não confere erudição a nenhum hino. Se Camões me permite a paródia, chutar a bola é preciso, compor hinos não é preciso, pois é preciso mestria, a mestria de artistas, não de artesãos.Fortuna_Wheel

Magistralmente, motivos muito mais tolos que uma agremiação desportista já ganharam composições verdadeiramente artísticas. Juntem-se poemas satíricos da Idade Média que versam sobre dinheiro, bebedeira e orgias escritos em latim e alemão por monges safadinhos e eruditos errantes (os goliardos, dos quais você certamente ouviu falar nas aulas de História Geral) e a genialidade de um Orff e voilà!: está pronta a cantata cênica Carmina Burana. Se não a reconheceu de pronto, ouça o 1º movimento da obra, Fortuna Imperatrix Mundi, e tenho certeza de que vai ligar o nome à "pessoa" – no cinema, a faixa já embalou [erroneamente, é claro] várias cenas de suspense e terror.

Os carmina literários correspondem a um códex de cerca de 2 centenas de poemas escritos nos séculos 11, 12 e 13, dos quais Carl Orff, entre 1935 e 1936, pinçou alguns para compor sua cantata, dividida em 3 partes.

A conhecidíssima invocação à Fortuna introduz e a descoberta do amor juvenil, chega-se ao boteco. E aí sobressaem os cantos goliardescos que celebram as maravilhas do vinho. O inebriante 14º movimento, In taberna quando sumus (http://bit.ly/pPgJFb) – a minha predileta –, suspende preconceitos e hierarquias e brinda todos que se entregam aos prazeres de Baco, ou Dionísio (na mitologia grega). O coro de vozes masculinas retrata um boteco abarrotado à meia luz, ébrios caídos pelos cantos, homens se engalfinhando, outros têm uma mão debaixo do saiote de uma mulher e os seios dela na outra, amigos erguem alto os canecos para o brinde, os músicos tocam, poetas declamam. À boemia! Eis um hino realmente digno à bebedeira e, em última instância, a Baco. Melhor ainda com o prestígio de uma Royal Philharmonic Orchestra. É, não é para qualquer um...

Por fim, o coro repete a invocação à Fortuna. Hora de pisar no chão de novo.

Quando vou para o bar, nem me lembro que existem Zeca Pagodinho, Cláudia Leitte ou um porre outro que seja. Que brahmeiro que nada! Dá para ser clássico até na hora de encher a cara.

A Baco!