Ipsis Litteris

Revisão de textos



terça-feira, 28 de dezembro de 2010

[sem título]

“O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.”

Carlos Drummond de Andrade

 

Olha, Carlos! Olha! Vê a mesa em que, de fato, nos conhecemos. E não é sem uma pequena comoção que eu a olho e meus olhos se querem encher duma fremente tempestade.

Olho-a – e me é inevitável – e alço as lembranças do dia que estudava e tu, ao passares, entrastes, definitivamente, onde – não – devias. Relembro três, sete vezes todos os detalhes e creio que, naquele instante, aquela mesa ter-se-ia tornado juíza do nosso encontro. Não apenas, mas muito mais: permutamos nossa existência, ela e eu.

Olho-a. Sua matéria rude, os ferros enferrujados, exibem o grotesco de artistas malfadados, intalentosos. Ela, suporte grosseiro de braços e nádegas, palco d’amizades e namoros, festas e contendas. Contudo, ela, de dois bancos, dois longos bancos quietos, contemplativos, acompanhada. E, ainda, ela, marco e profeta do nosso encontro, meu e teu.

Olho-a. E nos meus tímpanos cala-se o silvo de Éolo. O pássaro álgido gralha um sol estático. E estou só. Eu, tão móvel, conhecido das gentes. Eu, limpo e sadio, de face e palavra tão agradáveis. Eu, amante e apaixonado. Eu, conhecedor de tanto e mais sábio do que uma… uma mesa de concreto.

Olho-a e a vejo, agora, caída. Há tempos, e ninguém a quis erguer. Restaram-lhe os bancos, que, quietos, a contemplam. Impassivos, talvez choram.

Olho-a caída e sei que também caí. Tombei na vida, tombei no amor. E me escandalizo: como posso ter eu semelhante termo de um concreto, frio, rijo, imóvel? Eu, que tanto corri, tanto amei, tanto sofri. Destino ignóbil para quem, de si, pensava muito ser.

Olho-a e ouço, sozinho que estou, um riso sardônico a me atravessar a espinha. Por uma fera, o fio da vida era uma tenra rosa a despetalar.

Olha, Carlos! Olha! Vê a mesa, nossa mesa tombada! Pois a vida não me quis um coração em pétalas. Colocou-me, porém, uma pedra a no peito pulsar.

Olha, Carlos! Olha! Que o coração que em mim batia é o mesmo que ora vês tombado entre dois bancos, dois longos bancos, quietos e contemplativos.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Era uma vez…

Contos de fada. Quem nunca ouviu ou contou um deles, mesmo que pelas metades? Quantas histórias, quantas versões! Herdeiros da narrativa oral, muito se discute sua natureza pedagógica e moral, visto que algumas versões de contos de fadas mais conhecidos apresentam, e. g., cenas de adultério, incesto, canibalismo e morte hedionda.

Sheldon Cashdan, em Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de fadas influenciam nossas vidas (2000), aponta: “é por isso que muitos dos primeiros contos de fada incluíam exibicionismo, estupro e voyeurismo. Em uma das versões de Chapeuzinho Vermelho, a heroína faz um striptease para o lobo, antes de pular na cama com ele. Numa das primeiras interpretações de A Bela Adormecida, o príncipe abusa da princesa em seu sono e depois parte, deixando-a grávida”.

E dentre as diversas versões de Chapeuzinho Vermelho, existe uma, exótica e moderníssima, que muito me apraz. Na verdade, trata-se de uma música: composição de Dero, Crap e Flux, integrantes da banda alemã Oomph!, Wer schön sein will muss leiden conduz o leitor/ouvinte diretamente à cena em que Chapeuzinho Vermelho (Rotkäppchen), diante da vovó (Großmutter) transfigurada, questiona-lhe certos atributos físicos.

Com o advento de modernos procedimentos estéticos de efeito praticamente instantâneo – cirurgia plástica, toxina botulínica, lipoaspiração, bioplastia, implante de silicone, alisamento capilar etc. etc. – a preços módicos e a vulgarização do corpo fit como modelo de saúde, não faz mais sentido a tradicional figura da nonna gorduchinha e de cabelos brancos enrolada num avental preparando docinhos para o lanche dos netos pentelhos ou esticada na espreguiçadeira diante da TV assistindo ao Baú da Felicidade.

Aliás, a velhice não existe mais, nem mesmo a inatividade senil. Hoje, fala-se em melhor idade, mais uma fatia da sociedade em que se aplicarem as financeiras, as indústrias do entretenimento, as agências de turismo. Laboratórios farmacêuticos e drogarias é que se devem estar rebolando para não perder uma parcela considerável de lucro.

Em breve, até Papai Noel vai aparecer enxuto e de barba aparada velejando os sete mares e jogando bocha ou golfe, se não quiser ser imortalizado como somatótipo propenso a infarto, dores reumáticas, mal de Alzheimer e uma série de outros males relacionados a peso e a idade. Sem contar questões de proteção aos animais que pesem positivamente para o lado das renas…

Segue, então, letra e tradução da música

Warum hast Du so große Augen | por que tens olhos tão grandes?
Warum hast Du so straffe Haut | por que tens pele tão esticada?
Warum hast Du so große Brüste | por que tens seios tão grandes?
Warum bist Du so gut gebaut | por que estás em tão boa forma?

Großmutter, Großmutter | vovó, vovó,
warum bist Du noch so jung | por que és ainda tão jovem?

Wer schön sein will muss leiden, mein Kind | quem quer ser jovem deve sofrer, minha criança
Die Welt wird Dich beneiden, mein Kind | o mundo vai te invejar, minha criança
Weißt du nicht, wer seine Seele an die Hölle verkauft | não sabias que quem vende sua alma para o inferno
wird immer jung sein, schön und schlank mit flachem Bauch | será sempre jovem, belo, e magro com barriga tanquinho?
und ich weiß, dass willst Du auch | e eu sei que você também quer

Warum hast Du so schlanke Beine | por que tens pernas esguias?
Warum hast Du so volles Haar | por que tens cabelos cheios?
Warum hast Du so dicke Lippen | por que tens lábios grossos?
Warum bist Du so sonderbar | por que és tão extravagante?

Hör mir zu | escuta-me

Wer schön sein will muss so viel Schmerz ertragen | quem quer ser bonito deve suportar muita dor
drum schau mir bitte nicht ins Herz, mein Kind | por favor, não me olhes no coração, minha criança
Wer schön sein will muss viele Wunden haben | quem quer ser bonito deve ter muitas feridas
drum schau mir bitte nicht ins Herz | por favor, não me olhes no coração

Weißt du nicht, wer seinen Körper in der Hölle bestellt | não saber que quem encomenda seu corpo no inferno
bleibt immer jung, hat viel Erfolg und schwimmt im Geld | fica sempre jovem, tem muita sorte e nada em dinheiro
und das ist es doch was zählt | e o que importa mesmo é isso

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Quando Chico Buarque e Rammstein se encontraram

Comecei a curtir Rammstein muito antes de começar a aprender alemão. Na verdade, o que mais me motivou a procurar um curso de língua alemã foi justamente esse contato com a língua de Brecht, Kafka, Goethe. Mesmo gostando muito da banda, na terça-feira passada (30/11), abri mão da oportunidade de assistir à segunda apresentação dos caras aqui no Brasil, a turnê de Liebe ist für alle da (2009), não pelo preço do ingresso (consideráveis R$ 200 pelo mais barato!), mas por uma espécie de oclofobia (tenho mesmo é medo de ser pisoteado, devido à minha altura…!).

Mas me fartei de escutar o LIFAD, o mais recente álbum da banda. E futricando pela net, descobri que a quarta faixa desse álbum, Haifisch, intertextualiza com uma das canções do musical Die Dreigroschenoper (1928), Die Moritat von Mackie Messer, o que, imediatamente, me lembrou Chico Buarque. Chico Buarque? Sim, o bom e velho Chico: a primeira e a última canções da Ópera do Malandro, de 1979, são uma versão em português da canção em alemão.

Die Dreigroschenoper é um musical composto pelos alemães Bertolt Brecht, poeta, diretor e dramaturgo, e Kurt Weill, compositor. Em tradução livre para o português, o título traduz-se algo como A Ópera de Três Vinténs, “planejada de forma tão pomposa, como só um mendigo poderia sonhar, e porque ela deveria ser tão barata, que até os mendigos possam pagar”, numa clara crítica ao mundo capitalismo. Inspirada na ópera de balada de John Gay The Beggar’s Opera (1728), Die Dreigroschenoper narra o desfecho trágico de um notório criminoso – MacHeath, popularmente conhecido como Macki Messer – da Londres vitoriana, cujos atos se emaranham com as atividades ilícitas da polícia e de banqueiros. Há adaptações para o cinema e, mais recententemente, para a televisão (2004).

A canção de abertura do musical de Bertolt e Weill, Die Moritat von Mackie Messer, fez estrondoso sucesso e já rendeu mais de 30 versões (e outras tantas referências), desde a primeira execução da ópera, entre elas a de Chico Buarque, para o musical Ópera do Malandro – posteriormente também ganhou adaptação para o cinema (1985), que narra a história de Max Overseas e seu envolvimento com atividades ilícitas.

Haifisch não é exatamente uma nova versão de Die Moritat, mas sugere intertextualidades. O título traduz-se por tubarão em português, peixe com o qual MacHeath é comparado – enquanto o tubarão mostra os dentes (Zähne) na cara, a faca (Messer) de MacHeath ninguém vê:

Und der Haifisch, der hat Zähne
Und die trägt er im Gesicht
Und MacHeath, der hat ein Messer
Doch das Messer sieht man nicht

Diferentemente, o texto de Rammstein não se refere diretamente a algum criminoso e, no contexto geral do álbum – o amor é para todos aí – parece apontar para a velha fórmula “os brutos também amam”:

Und der Haifisch, der hat Tränen
Und die laufen vom Gesicht
Doch der Haifisch lebt im Wasser
so die Tränen sieht man nicht

Tubarões também amam. E choram, mas suas lágrimas  (Tränen) não são vistas, porque vive de baixo d’água – e suas lágrimas é que salgam o mar:

Und so kommt es dass das Wasser
in den Meeren salzig ist

Além do mais, ambos os textos mantêm versos heptassílabos como padrão métrico.

Assim, não é à toa que em minha biblioteca de música Chico Buarque e Rammstein cantam sempre no mesmo palco. Um artista que se preocupa em conferir sentido ao que produz merece ser ouvido, visto, sentido etc. etc.