Ipsis Litteris

Revisão de textos



quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Em fim

Enfim, o último dia do ano. Inevitável não fazer retrospectivas. Alívios e agonias somam-se a velhas expectativas que, travestidas de um sentimento de renovação, sentem-se novas, mas não são. Hora de reavaliar estratégias, não porque o ano tenha chegado ao fim, mas porque um outro mês começa e, assim, vencem o aluguel, o telefone, a internet, algumas prestações. É, a vida continua (e é bonita, é bonita e é bonita). Não pulo sete ondas nem faço oferendas a nenhuma entidade - que não a própria vida. Mais tarde, vou-me juntar a algumas pessoas que, assim como eu, não descolaram nada com custo-benefício mais apropriado. Vestirei camisa branca, não por simpatia, mas, como não lavei roupa esta semana, somente me sobraram uma preta e uma branca, e está quente demais para roupa escura. Nada de lentilha, por favor, tão sem graça quanto a tal da ervilha. Talvez duas ou três flûtes de champanhe. E meu único ritual aos fins de ano: recitar A passagem do ano, de Drummond.

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olhar e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras expreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca, lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Volp 2009: acertos e desarranjos

A ansiedade com que aguardei a nossa nova reforma ortográfica ainda vigora a cada consulta em meu exemplar do mais recente Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, vulgo Volp 2009. Lembro que eu estava de plantão no Correio de Uberlândia quando a reforma final e oficialmente chegou ao jornal: uma espécie de agonia guiava meus olhos à procura de infraestrutura com hífen e creem, deem, leem, veem com acento, como guia a fúria os olhos do caçador faminto. Acento. Até piadas baratas logo surgiram, afinal, imagine voo sem acento. Pior: diarreia... Como deve ser desconfortável, pra não dizer nojento.
Enfim, a recebi de bom grado, com certa ressalva, claro. Não gostei da supressão do trema, tão producente no português, mas certamente nada inofencivo. Mas outros detalhes me preocupam mais.
Acabo de revisar um longo texto jurídico que, entre outros tópicos, abarcava tecnologia da informação. Vocabulário computacional em português é praticamente um dicionário de inglês e, enquanto procurava compostos com web no Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa versão 3.0, por referenciação cheguei ao vocábulo internet. Quão grande não foi o meu susto: a entrada não estava italicizada, o que significava que eu estava diante de um vernáculo. Inicialmente julguei ser falha do dicionário eletrônico. Conferi no impresso: sem itálico. Meu último recurso: Volp 2009. Não havia internet na seção de estrangeirismos, mas estava lá, folgada, entre os vernáculos.
O mais interessante é que performance, e.g., que realmente tem cara de vernáculo, continua com status de anglicismo e, portanto, deve receber algum grifo que a distinga.
Adequações...

sábado, 14 de novembro de 2009

Primeiro aos 28


Primeiro post aos 28 anos. Uau, 28! Graças a... meus pais, meus amigos, meus próprios esforços. Não foi fácil chegar até aqui e a estrada do futuro está um tanto sombria. São os objetivos de vida que, parece, se afrouxaram (entenda-se 'foram afrouxados'). E já é tempo de revê-los, a fim de comemorar outros 28 anos.

E também apagou velazinhas comigo a Queda do Muro de Berlim. Na verdade, faço-me uma esfinge quando me perguntam o dia do meu aniversário. Nem todo mundo que me conhece saca bem de História, mas pelo menos a data da queda do Muro eles sabem. É minha pequena contribuição para manter vivo um mínimo de consciência histórica.
Parabéns a mim e ao erro de Günter Schabowski!

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Saber X Poder

É desanimador ver todo seu esforço na escola, na faculdade não valer absolutamente nada diante do poder – não o poder sinônimo de capacidade, aptidão, mas aquele despótico, tradução de dominação e supremacia que sempre tem a razão (razão com várias ressalvas).É desalentador ver sua faculdade, seus diplomas, os livros lidos, as noites maldormidas por conta das provas da manhã seguinte, o leão nosso de cada dia ser friamente rejeitados por um pesado “Vai ser assim porque eu estou mandando”. Como diz a sabedoria popular: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Como revisor de textos, a formação em Letras proporcionou-me sólido embasamento lingüístico, e muitos mitos e preconceitos lingüísticos foram superados. Como agir diante do jornalista coordenador de redação, formado em mil novecentos e bolinhas, maniqueísta por tradição, que quer me desautorizar dentro do MEU campo de atividade?Com todo o respeito à profissão dos meus muitos amigos jornalistas (compartilho, também, com eles o ultraje da não obrigação do diploma para o exercício da profissão), o cara é jornalista, não linguista (muito menos gramático). No máximo, entende de linguagem. De língua entendo eu, afinal, durante cinco anos, sentei-me no banco de aluno de instituto de Letras, e, depois, de mestrado em Análise do Discurso (sem me esquecer, claro, do autodidatismo em português e inglês e dos meus onze anos de ensino fundamental e médio).Enfim, que valor tem todo esse investimento em conhecimento, se a palavra burra do autoritarismo a tudo pode aniquilar?