Umas das muitas infindáveis discussões sobre usos da língua portuguesa diz respeito ao plural de siglas. Deve-se usar 's ou somente o -s? Afinal, siglas têm plural? Muito do que se vê no uso das siglas está balizado por questões gerais de uso consagrado e outras particulares de uso estilístico.
Uma coisa é uma coisa...
As siglas, ou abreviaturas, são ao mesmo tempo um processo de formação vocabular da língua portuguesa e o próprio produto desse processo e consistem de uma palavra formada pelas letras (ou pelas sílabas) iniciais de uma outra palavra ou de um sintagma: AM (Amazonas) e MinC (Ministério da Cultura).
... outra coisa é outra coisa
Não confundamos siglas com abreviações. Enquanto siglas são composições vocabulares (várias palavras reduzidas a apenas uma), abreviações são a redução do corpo fônico de uma palavra ou de um sintagma, limitada por um ponto (.), como as expressões latinas e.g. (exempli gratia) e r.i.p. (resquiescat in pace)
Como se escrevem siglas
As siglas são escritas, via de "regra" (não há, formalmente, regras sobre siglas, apenas considerações – por vezes dissonantes – de estudiosos consagrados), em letras maiúsculas, quando constam de até 3 letras. Aquelas com 4 ou mais letras orientam-se pelo seguinte raciocínio: se formam uma palavra decomponível em sílabas, então a primeira letra é maiúscula e as demais, minúsculas, como Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte); se não podem ser divididas em sílabas, mas cada letra é soletrada, então toda a composição é escrita em letras maiúsculas, como em CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa). Não se usam pontos para separar as letras que compõem as siglas.
Note-se o comportamento divergente de algumas siglas com suas "regras" de formação. O que se vê em MinC e CNPq, por exemplo, é a repetição de uma aplicação estilística à estas siglas. Nada impede que se escrevam Minc e CNPQ.
Siglas tem plural?
Enfim, o gargalo. Diz Cláudio Moreno (http://glo.bo/n44uSY | acesso em 26 ago 2011):
Eu, por exemplo, sigo a lição do meu grande mestre Celso Pedro Luft, que ensinava que as siglas, no momento em que são substantivos (mesmo criados artificialmente, são substantivos, exercendo todas as funções sintáticas reservadas a essa classe de palavras), passam a ter plural, que é assinalado, no Português, pelo acréscimo do S
Pode-se facilmente objetar o argumento de Celso Pedro Luft. Nem todos os substantivos em português fazem plural em -s. E não me refiro aqui a estrangeirismos de uso corrente no Brasil, como o germânico blitz, cujo plural é blitze, e o latino campus, cujo plural é campi; nem a palavras desconhecidas da maioria dos falantes nativos de português brasileiro.
Diversas são as formas plurais possíveis em português: gaviões, escrivães, artesãos, papéis, sóis, males, canis, projéteis, itens, pólens, juniores. Para muitas palavras, acrescentar -s apenas não basta, há também uma pequena modificação morfofonética no corpo do radical.
Outras palavras nem mesmo se modificam no plural e são abundantes os vocábulos que o dicionário registra como 'substantivo de dois números', por exemplo códex ou tórax. Alguém poderia, então, alegar: "mas quem é que usa códex tão frequentemente assim?". Citemos, pois, ônibus e lápis. "Ah, mas estas já terminam com a letra s!" Que se pode dizer, então, em defesa do plural de sem-teto e sem-trabalho?
Várias são as possibilidades de formação de plural na língua portuguesa. Por que as siglas deveriam ter plural? E por que um plural, digamos, regular, pelo simples acréscimo de -s? Além do mais, recordemos o processo de formação de uma sigla. Não é pelas letras iniciais do sintagma? Por que acrescentar -s, então?
Coloquemos, pois, marca de plural nas siglas e vejamos: se, em CPIs, é imediata a percepção da marca de plural, em siglas com mais de três letras e que são silabáveis, como Bafta (a premiação – cujo plural pode ser tranquilamente justificado por um processo metonímico), o plural já não é tão imediatamente evidente e pode-se confundir o -s com a inicial de uma palavra que não consta do sintagma.
"Apóstrofo–esse"
Agora, o que não faz absolutamente nenhum sentido é a tentativa de formação de plural de siglas pelo acréscimo de 's. Sem chance!
O apóstrofo (') – e não se confunda com apóstrofe – em português tem uso especializadíssimo: indica a supressão de fonemas, como em mãe-d'água. Mais que isso, indica palatalização de fonemas em transcrições fonéticas ou transliterações. Portanto, nada de plural.
Influência anglicista? Também não, porquanto o apóstrofo no inglês indica a relação de posse simpaticamente chamada de genitive case. É certo que brasileiro gosta de imitar os anglófonos, mas esta nem Tio Sam explica.
Enfim...
De tudo, fica a lição de que não existe regulamentação formal quanto ao plural de siglas e seguir o que já se convencionou talvez seja a melhor decisão a se tomar: siglas fazem plural pelo simples acréscimo da letra esse ao fim. Mas nunca, nunquinha mesmo, queira fazer plural do que quer que seja utilizando 's – não é nem bonito nem funcional.
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