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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A doutrina política maquiavelista em O Príncipe*

*Este artigo, de caráter inédito, surgiu das discussões em sala durante as aulas de História da Filosofia Política 1 (GFI014), ministradas pela professora doutora Geórgia Cristina Amitrano no curso de Filosofia do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia (Ifilo/UFU) no primeiro semestre de 2011.

1 INTRODUÇÃO

O homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera

(Augusto dos Anjos)

Em 1513, Nicolau Maquiavel escreve um opúsculo, O Príncipe, que posteriormente lhe renderia o famigerado termo antroponimicamente derivado maquiavelismo. Stricto sensu, maquiavelismo baliza a doutrina política de Maquiavel. Contudo, tal doutrina, escoada em filtros muito simplistas, passou a sinonimizar conduta desleal e pérfida, e outros derivados seguiram-se: maquiaveliano, maquiavelice, maquiavélico, maquiavelista, maquiavelístico, maquiavelizar – interessantemente, até mesmo a família linguística de maquinar e maquiagem, ainda que não haja nenhum parentesco etimológico, guarda certa proximidade gráfica e semântica com maquiavelismo, particularmente maquiável. Por questões de continuísmo derivacional e menor frequência de uso (e, por isso, menor gasto e, acredito eu, menor corrupção conceptual), darei preferência ao termo maquiavelista sempre que à doutrina de Maquiavel me referir.

Neste artigo, proponho-me a levantar os traços que caracterizam a política maquiavelista em O Príncipe.

***

Segundo Abbagnano (2007), na Filosofia Política, registram-se quatro sentidos principais para o termo política, quais sejam: i) a doutrina do direito e da moral; ii) a teoria do Estado; iii) o estudo dos comportamentos intersubjetivos; e iv) a arte ou a ciência do governo. No último centra-se a doutrina política maquiavelista.

A Itália do século XVI, fragmentada em diversos principados e algumas repúblicas (que se diferenciavam menos pela natureza do regime do que pelo grau de participação popular no governo), é o pano de fundo para que Nicolau Maquiavel apresentasse uma nova concepção política, a que os críticos frequentemente se referem como realismo político (ABBAGNANO, 2007).

Maquiavel, florentino que exercera diversos cargos públicos, mas, então, acusado de sedição e exilado em San Casciano após diversas reviravoltas no governo do Principado de Florença, redige e dedica O Príncipe a Lorenzo II de Médici, o Magnífico, talvez numa tentativa de obter amparo régio – “E se Vossa Magnificência, do ápice de sua altura, alguma vez volver os olhos para baixo, saberá quão injustamente suporto uma grande e contínua má sorte” (MAQUIAVEL, 2010, p.11) –, mas, com certeza, como fruto das renovações do Renascimento, movimento literário, artístico e filosófico iniciado em fins do século XVI e cujas características fundamentais eram o humanismo, o naturalismo e a renovação religiosa e político-conceptual, “com o reconhecimento da origem humana ou natural das sociedades e dos Estados” (ABBAGNANO, 2007, 1.006).

2 PARA GREGOS E MEDIEVOS

No período clássico da civilização grega (séculos V e IV a.C.), Platão, em A República, e Aristóteles, especificamente em Política, teorizam o Estado ideal e como deveriam ser o governo e o governante ideais. Na Kallipolis platônica, as crianças,

educadas pelo Estado, são encaminhadas para as funções específicas necessárias à manutenção da cidade, de acordo com a aptidão de cada uma. Isso se faria independentemente da posição dos próprios pais. Alguns interrompiam cedo os estudos para se ocupar com a agricultura, o artesanato e o comércio; outros estudariam mais um pouco para se tornar soldados dedicados à defesa da cidade; outros mais notáveis se preparariam até os cinqüenta anos, inclusive com rigorosa formação filosófica, e entre eles seriam escolhidos os magistrados mais capacitados para a administração da cidade (ARANHA, 2006, p. 38).

Aristóteles, a partir do cotejo de vários textos constitucionais (ARANHA, 2006), levantou argumentos do melhor Estado, das formas políticas corrompidas e da educação juvenil que fortaleça as virtudes constitutivas dos cidadãos.

Durante a Idade Média, os padres da Igreja procuraram atrelar a moral cristã à ação política e estabelecer relações entre as instâncias espiritual e temporal: “aos poucos se acentua a força do poder espiritual sobre o poder temporal e a ingerência da Igreja nos assuntos políticos” (ARANHA, 2006, p. 40, grifos da autora). Ainda segundo Aranha (2006), as teorias políticas desse período baseavam-se numa ideia negativa da natureza humana e o homem estaria constantemente ameaçado pelo pecado, pelo que era preciso um permanente controle comportamental, a cargo do Estado, a fim de evitar que se chafurdasse no pecado.

3 A RUPTURA: O MAQUIAVELISMO

O humanismo renascentista promoveu a secularização do pensamento. As especulações teóricas, baseadas em experiências e observações, se desvinculam das teses religiosas e do testemunho da fé e ganham autonomia.

Assim, é no mundo real que Maquiavel encontra os elementos para construir seu pensamento político. Observa, analisa e imprime sua crítica a respeito das ações de personalidades da sua época (como Luís XII de França e o papa Alexandre VI) – e até mesmo sobre eventos históricos da Antiguidade Clássica.

Com Maquiavel, a política afasta-se daquela medieval, pois conquista autonomia e se desata da ética cristã. Também se distingue da política clássica, pois, em vez de teorizar um Estado ou um governo ideal, comandado por um bom governante, apresenta a maneira como os governantes de fato agem. “E muita gente imaginou repúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como reais” (MAQUIAVEL, 2010, p. 36) – eis uma clara referência a A República, de Platão.

Em consonância com o empirismo renascentista, Maquiavel emprega largamente o exemplo do condottiere filho do papa Alexandre VI, César Bórgia, duque de Valentinois, com quem partiu em duas missões diplomáticas e por quem nutria admiração devido à “eficácia da ação, capacidade de dissimulação e malícia, considerando-o o modelo de príncipe que a Itália necessitava para a unificação” (ARANHA, 2006, p. 32).

Tal empirismo está intimamente relacionado com o utilitarismo: “[...] como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas do que pelo que delas se possa imaginar” (MAQUIAVEL, 2010, p. 36). Não caberiam, portanto, divagações utópicas quando o que se quer são comandos práticos de aplicação imediata.

Maquiavel vai além da máxima aristotélica de que o homem é “naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade” (ARISTÓTELES, 2010, p. 13 | 1253a). Segundo o florentino, “os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro, e, enquanto lhes fizeres bem, todos estarão contigo, oferecendo-te sangue, bens, vida, filhos [...]” (MAQUIAVEL, 2010, p. 38). O incômodo realismo do maquiavelismo procura justificar por que razão é preferível ser temido a ser amado, já que “o amor é mantido por um vínculo de obrigação, o qual, em virtude de serem os homens maus, é rompido sempre que lhe aprouver, ao passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio de castigo, que é um sentimento que não se abandona nunca” (MAQUIAVEL, 2010, p. 38).

4 A ÉTICA MAQUIAVELISTA

No entanto, dizer que Maquiavel se desfaz da ética cristã não significa que tenha se desfeito de toda ética. Segundo a doutrina política maquiavelista, o príncipe é antes de tudo um homem de virtù, virtuoso não aristotélica nem cristãmente, mas dotado de habilidades necessárias para conquistar e manter seu domínio e capaz de reconhecer o momento oportuno (Aristóteles fala em καιρός) e dele exitosamente se aproveitar em prol do coletivo, conforme o exemplo de Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu: “e examinando-lhes a vida e as ações, conclui-se que eles não receberam da fortuna mais do que a ocasião de poder amoldar as coisas como melhor lhes aprouveram. Sem aquela ocasião, suas qualidades pessoais se teriam apagado, e sem essas virtudes a ocasião lhes teria sido vã” (MAQUIAVEL, 2010, p. 19).

Ao discorrer sobre as formas de conquista de novos principados, Maquiavel aponta crueldades (especificamente, assassinatos) como estratégia válida somente se aplicada de forma comedida:

Bem usadas se podem chamar aquelas (se é que se pode dizer bem do mal) que são feitas, de uma só vez, pela necessidade de prover alguém à própria segurança, sem nelas insistir depois, transformando o mais possível em vantagem para os súditos. Mal usadas são as que, ainda que a princípio sejam poucas, em vez de extinguirem-se, crescem com o tempo (MAQUIAVEL, 2010, p. 25).

A crueldade dever ser aplicada em dose única e para benefício de a comunidade, de modo a dela obter confiança e apoio: “[...] ao apoderar-se de um Estado, o conquistador deve determinar as injúrias que precisa levar a efeito, e executá-las todas de uma só vez, para não ter de renová-las dia a dia. Desse modo, poderá incutir confiança nos homens e conquistar-lhes o apoio, beneficiando-os” (MAQUIAVEL, 2010, p. 26).

A virtude maquiavelista, tão realista e utilitária quanto a doutrina em que se insere, não comporta utopias nem se prende a conceitos como bondade e justiça. Na verdade, agir com bondade e piedade é dirigir-se para a própria derrocada:

vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria do que o modo de se preservar; e um home que quiser fazer profissão de bondade, é natural que se arruíne entre tantos que são maus (MAQUIAVEL, 2010, p. 36, grifos meus).

Mas isto não significa que o príncipe seja desprovido de um conceito de justiça ou sentimentos de bondade e piedade. Até mesmo Maquiavel admite que “seria sumamente louvável que um Príncipe possuísse, entre todas as qualidades referidas, as que são tidas como boas”; mas o realismo maquiavelista não perde de vista que “a condição humana é tal que não consente a posse completa de todas elas, nem ao menos sua prática consistente”, daí convir ao regente aprender a agir com maldade, se a ocasião o pede: “assim é necessário a um Príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade” (MAQUIAVEL, 2010, p. 36) – o poeta brasileiro Augusto dos Anjos (2004) compartilhava visão semelhante à de Maquiavel, conforme trecho de Versos Íntimos, tomado como epígrafe deste artigo.

Da mesma forma, o príncipe só deve proceder à pilhagem de bens e ao rapto de mulheres e crianças “quando houver justificativa conveniente e causa manifesta”. Contudo, estando em combate, convém ao príncipe “não se importar com a fama de cruel, porque, sem ela, não se conseguiria nunca manter um exército unido e disposto a qualquer ação” (MAQUIAVEL, 2010, p. 39).

Ressalto o caráter estratégico – e, portanto, transitório – da maldade a que se refere Maquiavel, de modo a se evitarem distorções de sua doutrina. Há, sim, um traço de oportunismo nas manobras políticas sugeridas por Maquiavel, sempre com vistas ao benefício de toda a comunidade.

Enfim, o fim somente justifica os meios enquanto direcionado para o benefício senão de todos, pelo menos da maioria da comunidade – o princípio do pars pro todo (segundo o qual o sacrifício de uma parte do corpo se faz necessário para a salvação de todo o restante) de que trata Walter Burkert (2001) parece acomodar-se confortavelmente no maquiavelismo. Quando os meios se orientam para uma finalidade particular e egoísta, justificam-se aí atitudes maquiavélicas propriamente, no sentido mais corrompido do termo.

5 CONCLUSÃO

Em suma, rompendo com a política utópica da Antiguidade Clássica e a política cristianizada da Idade Média, Maquiavel inaugura uma nova forma de se pensar o fato político e elabora uma arte de governo empírica, secular, realista, oportunista e, acima de tudo, humanista, a partir do mundo real, cru, e da observação do homem real, existente.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5. ed. Tradução: Alfredo Bossi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ANJOS, A. dos. Eu e outras poesias. São Paulo: Marin Claret, 2004.

ARANHA, M. L. de A. Maquiavel: a força da lógica. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2006.

ARISTÓTELES. A Política. Tradução: Nestor Silveira. São Paulo: Folha de S.Paulo, 2010.

BURKERT, Walter. A Criação do Sagrado. Vestígios biológicos nas antigas religiões. Tradução: Vitor Silva. vol. 3. Lisboa: Edições 70, 2001.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe e Escritos Políticos. Tradução: Lívio Xavier. São Paulo: Folha de S.Paulo, 2010.

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